domingo, 3 de agosto de 2014

Desconceituando #2: A Teia da Trama de Enemy

Denis Villeneuve subiu à fama quando lançou Prisoners (Os Suspeitos, 2013), pois antes disso, ele era pouco conhecido. Talvez os mais entusiastas da sétima arte tinham ouvido falar de Incendies (Incêndios, 2010), mas dificilmente o entusiasmo se equiparou ao mesmo entusiasmo do lançamento de Prisoners. Pois bem, algum tempo depois, agora com os holofotes voltados para ele, podemos dizer que Dennis Villeneuve foi um tanto que corajoso ao lançar Enemy, um filme de várias camadas de trama e de uma certa peculiaridade.
Enemy (O Homem Duplicado, no Brasil) tende entre o suspense e o drama. É importante dizer logo de cara que o filme não deixa a trama muito aberta para interpretações; existem interpretações corretas e incorretas do filme. Ou seja, se você acha que o Jake professor de história era irmão gêmeo do Jake ator, ou que se trata de viagem no tempo, ou que as aranhas estavam querendo aniquilar a humanidade e tomar a Terra, pare por aí, não é isso - e eu posso argumentar. Antes de tudo, acho que é valido dizer que esse post está repleto de spoilers, mas é valido também dizer que apesar de revelar a trama, ainda assim o filme vale a experiência.
No começo do filme, é apresentado ao espectador a frase: "O caos é uma ordem ainda indecifrada" retirada do livro O Homem Duplicado, do escritor português José Saramago. Guarde essa frase, voltaremos à ela. Assim sendo, vamos dividir o filme em quatro pontos que considero importante para o completo entendimento:

  • Jake professor de história e o Jake ator são a mesma pessoa.
  • As aranhas representam as mulheres no filme.
  • A trama gira em um padrão que se repete e a história começa quando esse padrão é quebrado.
  • O padrão é quebrado quando Jake (professor) decide assistir o filme que lhe foi recomendado.
A cena inicial estende-se por alguns minutos e se passa em uma casa que mais parece um sexclub. O Jake ator e mais alguns homens observam mulheres nuas e logo após vemos uma aranha em uma bandeja de prata prestes a ser esmagada pelo pé de uma das mulheres. Isso deve-se ao fato de que o Jake ator é viciado em sexo e isso fica claro conforme o filme avança.
Após a cena do sexclub, conhecemos o Jake professor de história e ele está lecionando. Ouvimos ele dizer - Controle. É tudo questão de controle - e então ele diz - E é importante dizer que isso é um padrão e que esse padrão se repete várias vezes através da história -. E faz todo sentido se levarmos em conta que o Jake professor de história e o Jake ator são a mesma pessoa porque o professor e o ator, antes de Jake, o professor, saber que havia uma cópia sua por aí viviam um padrão infinito. Após dizer isso, o professor de história cita Hegel ao proferir - Os grandes acontecimentos do mundo acontecem duas vezes - e então completa citando Marx - A primeira vez é uma tragédia e a segunda vez é uma farsa. 

Depois dessas duas cenas iniciais, vemos que a vida de Jake (professor de história) é realmente um padrão e que esse padrão se repete. Ele acorda, vai trabalhar, volta, transa com a namorada (Mary, Mélanie Laurent), dorme e tudo se repete. Porém, em um desses dias repetitivos, um professor recomenda um filme para Jake (professor) e ele decide assistir. Não é dificil achar pessoas se perguntando se não era um tanto que forçado a recomendação do filme como um empurrão para o desenrolar da trama. Pois bem. Eu discordo. A vida de Jake era um tédio - mesmo que com a Mélanie Laurent -, qualquer coisa que o tirasse da rotina era válido.
Quando assiste ao filme, Jake (professor de história) percebe um ator no longa que é muito parecido com ele. Jake (professor) procura na internet sobre o ator que ele tinha visto e compara a foto do Jake (ator) com uma foto sua (foto essa que está rasgada ao meio de forma que apenas seu rosto aparecesse). Ao comparar a foto, Jake (professor) percebe que o ator não era muito parecido com ele e sim idêntico à ele. A partir de então, ele fica obcecado sobre o ator e parte para assistir todos os filmes dele. Ao procurar uma foto do ator na internet, ele compara uma foto sua que está rasgado ao mesmo (como se fosse uma foto de pós-separação) e como se a mulher que estava ao seu lado tivesse sido removida da foto.
Após realizar mais pesquisas sobre o ator, Jake (professor) consegue um endereço e um telefone em uma carta endereçada ao ator Jake em seu antigo local de trabalho. Jake (professor) liga para o telefone e fala com o ator Jake. Ele tenta convencer o ator a marcar um encontro, mas Jake (ator) não aceita. É nesse momento que conhecemos o ator Jake de vez. Sua mulher (Helen, interpretada por Sarah Gadon) questiona Jake (ator) sobre a ligação com a seguinte frase: Você está vendo ela novamente? - Jake (ator) explode em fúria na mesma hora. Essa parte é fundamental para completo entendimento do filme porque toda a relação criada durante o longa é sobre Jake (ator) ter sido infiel à esposa. A partir daí, ambos Jakes concordam em se encontrar.

Antes que ambos se encontrassem, Helen (esposa do ator Jake) vai à escola onde Jake (professor) trabalha. Ela se emociona ao ver Jake (professor) e o mesmo (ainda sem conhece-la) pergunta se ela está bem. Helen troca algumas palavras com Jake (professor) ainda não acreditando no que está vendo. Quando Jake (professor) se levanta e se despede, Helen pega o celular na mesma hora e disca o número do marido. Essa cena é um dos argumentos que sustenta que Jake (ator) e Jake (professor) são a mesma pessoa. Como? Helen liga para o marido e assim que o mesmo atende, já não vemos mais Jake (professor) em cena. Sendo assim, Helen volta para casa questionando o que viu. Ela parece atormentada e nesse meio tempo Jake (ator) volta para casa supostamente após uma corrida. Ele traz blueberries porque ama essa fruta.


Vemos uma mulher com cabeça de aranha na cena seguinte passar por Jake (ator) e após essa cena, vemos uma mulher vestida sensualmente passar por Jake (professor) no hotel. Ambos Jakes encaram as figuras femininas. Depois, eles se encontram e se comparam. Jake (professor) entrega a carta que pegou no antigo local de trabalho do ator. O ator começa a seguir o professor e mary. Em um ônibus, o ator olha de cima para baixo o corpo de Mary (Mélaine Laurent) e suas feições sugerem que Jake acha Mary muito sensual e tenta conter qualquer e isso indica que ele tem problemas em ser fiel. Após essa cena, vemos Jake (professor) se encontrar com sua mãe. A mãe (interpretada por Isabella Rossellini) critica o filho dizendo: A última coisa que você precisa é ficar se encontrando com homens estranhos em hóteis. Você já não tem problemas o suficiente com uma mulher. Essa última frase vai de acordo com a teoria de que Jake foi e tem problemas em ser fiel à sua mulher. Após isso, a mãe oferece à Jake (professor) algumas blueberries e ele diz que não gosta da fruta. A mãe diz que ele gosta sim. Assim, fica claro que Jake está reprimindo memórias do seu verdadeiro eu afim de escapar de qualquer comprometimento. Depois disso, a mãe comenta sobre o apartamento e o emprego de Jake, elogiando. Isso deve fazer você pensar que seu emprego como ator não foi para lugar nenhum. Assim, temos dois pontos:

  • O professor Jake é o verdadeiro Jake, e o ator é apenas Jake antes do fracasso como ator e durante todos os seus problemas matrimoniais.
  • Helen deixa que Jake (ator) acredite na mentira para que ela possa ajudar na loucura do marido.
Parte para o entendimento sobre Jake ser infiel e estar culpando-se por isso está na cena onde Jake (ator) questiona o professor Jake se ele dormiu com sua mulher. Jake (professor) diz que não, mas Jake (ator) diz que mesmo assim levaria Mary em um encontro e que após isso ambos estariam quites. Pode parecer meio arranjado isso, mas faz sentido. Jake parece agora estar iniciando forçadamente um conflito dentro de mente para que assim, no final, ele ficasse quite consigo mesmo.

O conflito acontece por completo quando Jake (professor) decide ir à casa do ator e encontrar com a mulher. Perceba que ambos Jakes trocaram de mulher um com o outro. Nessa cena, talvez estejamos conhecendo o verdadeiro Jake.
Jake (professor) fala com o lobby boy do condomínio do prédio do ator. O lobby boy leva Jake até o apartamento onde o ator mora e durante o trajeto, ele questiona Jake (professor) sobre o clube. Jake (professor) parece não saber sobre o que o lobby boy está se referindo. Ao entrar no apartamento de Jake (ator), o professor encontra a mesma foto que ele tem em casa, porém, a dele está rasgada. Nessa foto, vemos Jake e sua mulher. A foto está emoldurada e perfeita. Helen chega em casa e o professor Jake age como se fosse o ator. Ele parece nervoso. Durante os próximos minutos, as cenas tendem entre Jake (professor) com Helen e Jake (ator) com Mary. Quando Jake (professor) se deita ao lado de Helen na cama, ela pergunta: Você teve um bom dia na universidade? Isso prova que Helen sabia sobre a loucura do marido.

O conflito termina quando Mary percebe uma marca de anel no dedo do ator Jake. Nesse exato momento, Jake (professor) acorda ao lado de Helen. A partir daí, Jake (ator) e Mary brigam dentro do carro ao voltar para casa e Helen conforta Jake (professor) ao sugerir que ele fique. A briga entre Mary e Jake (ator) fica pior que faz com que Jake se distraia e cometa um horrendo acidente de carro. Assim, Jake encerra o conflito ao eliminar sua parte negativa (o ator, com problemas matrimoniais); o que agrega em sentido à frase de Helen ao pedir que ele permaneça. Ao final do filme, Jake (professor e agora o definitivo Jake) está vestindo um dos ternos do suposto Jake ator quando encontra a carta que ele entregou ao ator quando eles se encontraram da primeira vez. Durante a maior parte do filme vemos essa carta, mas não sabemos o que há dentro. Jake abre a carta e encontra uma chave. Ele encara a chave com tentação. Helen diz que a mãe de Jake ligou e ele pergunta a Helen se eles haviam combinado algo para mais tarde porque ele tinha que ir à um lugar. Esse lugar é definitivamente o sexclub do começo do filme.

Então, acontece a cena final. Ao perguntar sobre algum comprimisso com a esposa naquele dia mais tarde e não obtendo resposta, Jake chama Helen e caminha até o quarto. Quando chega lá, vemos uma aranha assustada e Jake a encara com uma feição de desapontamento e como quem diz "aqui vamos nós, tudo de novo".
As aranhas no filme representam as mulheres e é assim que Jake as enxerga. Todos os seus problemas com relacionamento são reafirmados na cena final. Uma aranha prende sua presa em sua teia, impedindo que a mesma vá à algum lugar até que, por fim, a presa seja devorada. Por vezes, vemos shots da cidade que foram intencionalmente capturados para parecerem com teias de aranhas. Jake se sente preso. Jake não se sente livre. Ele se sente preso à seu casamento e ao fato de que Helen está grávida. Mas por que a aranha se assustou quando Jake chegou ao quarto? No começo do filme, vemos Jake em um sexclub assistindo a uma stripper prestes a esmagar uma aranha. A aranha se assusta porque ela teme em ser esmagada. Jake não consegue controlar seus impulsos e, tristemente, na primeira oportunidade que ele tem de pular a cerca, ele o faz. Já o olhar de desapontamento de Jake ao ver a aranha se assustar se deve ao fato de que ele percebeu que está prestes a reiniciar o padrão e que dificilmente conseguirá impedir que isso aconteça novamente. Como provar? O filme começa com uma ligação da mãe de Jake e termina com Helen dizendo que a mãe dele ligou. Coincidência? Não.

Jake cita no começo do filme: E é importante dizer que isso é um padrão e que esse padrão se repete várias vezes através da história. - Ele se referia a controle. Importante lembrar que ele também diz isso: Os grandes acontecimentos do mundo acontecem duas vezes. A primeira vez é uma tragédia e a segunda vez é uma farsa. Jake percebe que está vivendo uma farsa agora e se desaponta como se não tivesse mais paciência para continuar com isso.
O título foi inteligentemente escolhido, Enemy (inimigo em português) indica que Jake é seu próprio inimigo; tanto que o confronto acontece contra ele mesmo.
Enemy é uma obra-prima baseada no livro O Homem Duplicado, do escritor português José Saramago e já pode ser considerado uma das eficientes adaptações de livro já feitas para o cinema ao nível de Fight Club e Laranja Mecânica, dois filmes que com certeza passarão pelo Desconceituando.

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